Falando de música em Mesquita.
Filho de família pobre, Nelson Antônio da Silva nasceu no Rio de Janeiro em 29 de outubro de 1911. Morou na rua Mariz e Barros, mudando-se em seguida para a Silva Manuel, na Lapa. Depois, para a rua Joaquim Silva, nos Arcos, e daí para uma temporada no subúrbio de Ricardo Albuquerque. Finalmente moraria na Gávea.
Teve uma infância como todo menino carioca, solto na rua, em peladas, bolinhas de gude, correndo atrás de balões. Quando tinha 7 anos de idade pegou a temida gripe espanhola, que assolou a cidade do Rio de Janeiro, causando inúmeras mortes. Devido aos problemas financeiros de sua família teve que deixar a escola no terceiro ano primário para trabalhar numa fábrica de tecidos e depois como auxiliar de eletricista.
A música nasceu cedo em Nelson. Seu pai, Brás Antônio da Silva, tocava tuba na Polícia Militar. Nas tardes de domingo, a família se reunia, seu tio Elvino tocando violino e Nelson tentando acompanhá-lo num instrumento feito em casa: uma caixa de charutos com alguns arames esticados. Sua mãe, Maria Paula da Silva, era lavadeira no Convento de Santa Tereza e cuidava de seus cinco irmãos, Iracema, Arnaldo, João, Atarílio e José.
Seu contato com a malandragem carioca começou cedo. Ele ficaria amigo de famosos e famigerados valentes como Brancura, Edgar e Camisa Preta. Na adolescência, morando na Gávea, entraria em contato com os chorões e sua músicas. Ficava fascinado com a perícia dos grandes mestres do cavaquinho e ia espiando e aprendendo os truques do instrumento. Como não tinha dinheiro para comprar um cavaquinho, treinava quando conseguia emprestado de alguém.
Em suas andanças pelos bailes dos clubes cariocas conheceu músicos de grande influência em sua formação, como Edgar Flauta da Gávea, Heitor dos Prazeres, Mazinho do Bandolim e o violonista Juquinha, de quem recebeu importantes noções de como tocar cavaquinho. Nessa época adquiriu um costume que virou sua marca: tocar apenas com dois dedos. E ganhou o apelido que o acompanharia por toda a vida.
Demonstrando uma habilidade natural para o instrumento, Nelson compôs um choro, “Queda”, que o fez tornar-se respeitado como músico, passando a ser chamado para fazer shows. Fugia de seu trabalho como ajudante de eletricista e ia para a rua da Conceição para ver músicos como Luperce Miranda tocando. Afinal, ganhou um cavaquinho de presente.
Aos 20 anos, conheceu Alice Ferreira Neves. Meses depois foi arrastado pelo pai da moça até a delegacia e obrigado a se casar. Teria quatro filhos. Com as obrigações de um chefe de família e sem emprego, Nelson teve que pedir socorro à família. Seu pai, que era contramestre da banda da corporação, conseguiu para ele um posto como cavalariano na Polícia Militar.
Quem achava que a disciplina do quartel mudaria seus hábitos boêmios se enganou. Todos os dias Nelson pegava seu cavalo, Vovô, e subia o morro da Mangueira para a patrulha. Chegando lá parava de bar em bar, onde fez amizades com os sambistas como Carlos Cachaça, Zé da Zilda e Cartola, sempre tomando umas e outras.
Nelson conta como conheceu Cartola: “Foi na quadra da Mangueira. E, no nosso primeiro encontro, teve um caso interessante. Na época, era polícia e estava de ronda pelo morro. Aí, resolvi parar numa tendinha e deixei amarrado na porta o cavalo, e olha, fiquei tanto tempo conversando com o Cartola, que quando saí da birosca, cadê o animal? Tinha sumido. Fiquei apavorado. E resolvi, assim mesmo, voltar para o quartel. Não é que quando chego lá dou de cara com o cavalo na estrebaria? O danado parecia que sorria pra mim pela peça que me pregou.”
Sua patrulha até que era eficiente. Como conhecia todo mundo no morro, quando encontrava alguma encrenca, não prendia: conversava com os envolvidos e resolvia a questão. Nelson mergulhava cada vez mais no samba e na boêmia, passava dias longe de casa, faltava ao trabalho e era punido com detenção. “Eu ia tantas vezes em cana que já estava até me acostumando ao xadrez. Era tranqüilo, ficava lá compondo, entre as músicas que fiz no xadrez está “Entre a Cruz e a Espada”.”
Antes que fosse expulso da corporação, Nelson conseguiu baixa. Na mesma época separou-se da mulher, depois de alguns cavaquinhos e violões quebrados, ficando livre para dedicar-se à música e a boêmia sem cobranças nem recriminações. Sem dinheiro, habituou-se a ir à praça Tiradentes vender seus sambas por verdadeiras ninharias. Um de seus parceiros, Milton Amaral, também compositor e boêmio, costumava contar que, certa madrugada, fizeram um samba juntos. Dias depois, quando foi à editora para assinar o contrato, qual não seria sua surpresa ao constatar que era o 16º co-autor: Nelson já havia vendido a mesma música quatorze vezes.
Na década de 50, trocou o cavaquinho pelo violão. Mas não deixou a maneira de tocar com o polegar e o indicador que sempre impressionou instrumentistas como Paulinho da Viola, Turíbio Santos e Egberto Gismonti. Como compositor, notabilizou-se pela melancolia de sua poesia. E pela constância da morte em sua temática. “Sou um homem que está muito perto da fatalidade. Minhas músicas, por isso, falam sempre em morte e em Deus, não faltando os amores fracassados.” Nelson realmente viveu muitas tristezas. No começo da década de 40, depois de três dias e três noites na rua, tocando cavaquinho, quando voltou para casa, descobriu que sua mãe havia morrido e fora enterrada dias antes.
Com repertório de mais de 600 composições (a maioria delas inéditas ou esquecidas, pois dificilmente o músico as escrevia, preferindo guardá-las na memória), Nelson Cavaquinho criava de madrugada, nas mesas dos bares, com o violão e um copo de cerveja ou cachaça. “Nunca fiz samba por encomenda, por isso jamais vou compor um samba-enredo. Acho horrível você ter de fazer aqueles lá-lá-lá e oba-oba obrigatórios na linha melódica das escolas de samba. Faço músicas para tirar as coisas de dentro do coração. E foi assim desde o dia em que fiz meu primeiro samba.”
Seu principal parceiro, Guilherme de Brito, conta como o conheceu: “Conheci o Nelson Cavaquinho no Café São Jorge. Eu morava em Ramos naquela época e o Nelson já era um sucesso. Quando passava de manhã no botequim estava aquele aglomerado de gente em volta de uma mesa. Às vezes eu voltava de noite, trabalhava o dia inteiro, e lá estava o Nelson com o seu violão. Até que um dia eu me atrevi e cheguei perto dele com a primeira parte de um samba, que foi "Garça", e falei: "Ô Nelson, vê se você gosta aqui...". Ele disse que estava ótimo e fez a segunda parte. Dali em diante seguimos até o fim da vida e fizemos um trato de compormos juntos, só eu e ele. Foi muito boa a parceria e fomos leais até o fim da vida dele. Se bem que ele pulou fora duas vezes durante esse período e compôs com outro cara, mas foi muito bom. Se ele estivesse vivo, estaríamos com certeza até hoje ligados um ao outro.”
Com mais de 50 anos de idade, conheceria Durvalina, trinta anos mais moça do que ele, mãe de Márcia (que o compositor passaria a criar) e sua companheira pelo resto da vida.
Aos poucos o menestrel das ruas foi envelhecendo. Os cabelos tornaram-se brancos, as rugas fizeram residência em seu rosto. Com medo de ter problemas de saúde, parou de beber e de fumar. Já não mais varava as noites em claro, não desaparecia por dias seguidos. Mas continuava com o violão. Todos os dias, abraçava-o carinhosamente, com seu estranho hábito de tocá-lo quase na vertical. As composições foram rareando, no entanto, persistiram até o fim.
Na madrugada do dia 18 de fevereiro de 1986, aos 74 anos, ele morria, vítima de enfisema pulmonar. Ele agora chamava-se saudade.
OBRA
Em 1943, Nelson Cavaquinho teria sua primeira música gravada: Alcides Gerardi, então um cantor iniciante, lançava, “Não Faça Vontade a Ela”, num 78 rotações. No mesmo ano, Ciro Monteiro gravaria “Apresenta-me Aquela Mulher” e “Não Te Dói a Consciência”, em 1945, “Aquele Bilhetinho” e, no ano seguinte, “Rugas”, o primeiro sucesso de Nelson como compositor, que nessa época assinava como N. Silva. No final da década de 40, Roberto Silva lançava o samba “Notícia”. Em 1961, esse mesmo cantor gravaria “Degraus da Vida”.
Mas a fama só veio na década de 1960, quando começou a se apresentar em público no Zicartola, casa de samba comandada por Cartola, que se tornaria reduto da música popular. Em 1965, a musa da bossa nova, Nara Leão, lançava um disco com composições de vários sambistas, entre eles Nelson Cavaquinho. E na década de 70 suas músicas seriam gravadas por intérpretes de sucesso. Paulinho da Viola lançava “Duas Horas da Manhã”, e Chico Buarque, “Cuidado Com a Outra”. Clara Nunes gravaria “Minha Festa”, “Tenha Paciência”, “O Bem e o Mal” e “Palhaço”. Esta última composição já havia sido gravada por Dalva de Oliveira, em 1953. Uma de suas primeiras composições, o choro “Nair”, seria gravado por Altamiro Carrilho e sua banda.
Nas épocas difíceis, Nelson não hesitava em vender a parceria de uma de suas músicas em troca de algum dinheiro para pagar dívidas. Por isso, quase todas as suas criações foram registradas por mais alguém, embora a maioria delas tenha sido feita somente por ele. Quem são co-autores reais? Impossível saber.
Uma olhada na lista de seus parceiros pode revelar dados curiosos. Como o nome do quitandeiro que lhe vendia fiado ou o dono do bar onde devia dinheiro, Um de sus mais constantes ”parceiros” é César Brasil, proprietário de um velho hotel no centro do Rio de Janeiro e incapaz e compor um verso ou de tocar uma nota em qualquer instrumento. Como o destino fez de Nelson cavaquinho um de seus hóspedes, também fez com que César Brasil entrasse para a história da música popular brasileira como co-autor de um dos mais belos sambas do violonista: “Degraus da Vida”. Parceria que lhe custou cerca de cem mil-réis.
Algumas das parcerias reais seriam feitas com Milton Amaral, Jair do Cavaquinho e Zé Keti. Com o último, comporia a música “Meu Pecado”. Infelizmente, para não contrariar a legislação de direito autoral vigente na época, apenas o nome de Zé Keti podia aparecer nos discos. Com Cartola compôs “Devia Ser Condenada”.
Em 1968 participou do LP “Fala Mangueira” (Odeon) com Odete Amaral, Cartola e Carlos Cachaça.
Com sua voz inconfundível, rouca e áspera, gravou seu primeiro disco em 1970, pela gravadora Castelinho. Em “Depoimento do Poeta”, Nelson era entrevistado por Sérgio Cabral, Elizeth Cardoso, Sargentelli e pela cronista Eneida. Este disco sairia prematuramente do mercado, após a falência da gravadora. Foi reeditado em CD pela Warner na coleção “Mestres da MPB”. Quatro anos antes, a cantora alagoana Telma Soares havia lançado um disco inteiramente dedicado às composições de Nelson (“Telma Soares interpreta Nelson Cavaquinho”/CBS/1966), com produção de Sérgio Porto e arranjos de Radamés Gnatalli.
Em 1972, era convidado para gravar mais um LP, desta vez pela RCA. Durante as gravações, realizadas em São Paulo, Nelson mostrava que a fama não o mudara: no segundo samba conseguia transformar o estúdio de gravação em autêntica roda de samba, aproveitando a ocasião para celebrar o encontro com a velha guarda paulista.
O terceiro LP de sua carreira viria em 1973, aos 63 anos. Era “Nelson Cavaquinho”, lançado pela Odeon, no qual o compositor aparecia pela primeira vez em público tocando o instrumento que lhe dera o apelido. Esse trabalho representava também a primeira gravação de Guilherme de Brito – seu parceiro mais constante -, em dueto com o amigo em suas mais importantes composições: “A Flor e o Espinho”, “Se Eu Sorrir”, “Quando Eu Me Chamar Saudade” e “Pranto de Poeta”. Novamente com Guilherme, em 1977, Nelson participava do disco “Quatro Grandes do Samba” (RCA), ao lado ainda de Candeia e Elton Medeiros.
Um ano antes de morrer, Nelson Cavaquinho gravou o disco-tributo “As Flores em Vida” produzido por Carlinhos Vergueiro e Cristina Buarque. O sambista canta quatro faixas, incluindo a de abertura “Devia ser condenada” (parceria com Cartola), e tem suas composições interpretadas pelos produtores e ainda Chico Buarque (“Dona Carola”, parceria com Norival Bahia e Walto Feitosa), Paulinho da Viola (“Não te dói a consciência”, com Ary Monteiro e Augusto Garcez), Beth Carvalho (“Rugas”, com Ary Monteiro e Augusto Garcez), João Bosco (“História de um valente”, com José Ribeiro de Souza) e Toquinho (“Folhas Secas”, com Guilherme de Brito).
Em “Nelson Cavaquinho. Enxugue os Olhos e Me Dê Um Abraço” (Perfis do Rio/Relume Dumará/2000), livro de Flávio Moreira da Costa, com subtítulo tirado da segunda parte do samba Palhaço, do próprio Nelson, o autor conta episódios engraçados e momentos tristes que marcaram a vida do compositor. O livro mostra que Nelson experimentou uma vida de orgia, mas realça sua condição de poeta, autor de versos como: Tire o seu sorriso do caminho/que eu quero passar com a minha dor.